O avô Santos era um homem intenso, de momentos e histórias.
Aprendera que não se podia dar ao luxo de vaguear no futuro, à procura de
respostas antes de tempo, e a preferir entregar-se totalmente ao presente e
nele construir, dia a dia, o destino da sua vida. Do passado recordava aventuras, algumas
tão nítidas que parecia ter acabado de as viver e outras, de uma forma tão
ténue, que a sua quase transparência o fazia duvidar que as tivesse realmente vivido.
Independentemente de, também ele, ter tentado apagar algumas dessas experiências, a
verdade é que as suas marcas estavam espalhadas pelo seu corpo e vincadas na
sua alma. Tudo o que tinha vivido, sem excepção, fazia dele o homem que era. E
era um homem feliz. Feliz por poder olhar em todas as direcções da sua vida e
sentir que tudo o que devia ter feito, havia sido vivido. Tudo o que estava a fazer era o
melhor que conseguia e tudo o que viesse a fazer seria, apenas, a continuidade
do caminho que escolhera para ele próprio onde imprimiria em cada ação ou
pensamento o mesmo amor de sempre. Amava-se pelas suas virtudes e estava a
aprender a importância de saber aceitar e perdoar os seus defeitos. Em si,
existiam largas avenidas de certezas e algumas ruas estreitas e labirínticas de
dúvidas. Ele sabia como era. Um dia passeava pelas bonitas avenidas que tinha
construído com o passar da idade e no outro estava, intencionalmente,
perdido dentro de si, entre portas que não se abriam e becos sem saída.
O Diogo
e o Meia-leca já não estranhavam o silêncio do avô. Tinham percebido, com o passar
dos anos, que os grandes homens e os grandes donos, respectivamente, se faziam
de silêncios sem hora marcada. Esses momentos, começaram então a ser
respeitados e cada um fazia a sua própria introspecção. No princípio, o avô
Santos pedia para que eles não se assustassem. Dizia-lhes: - não deixei de ser
eu, apenas estou a dar início a mais uma luta no meu interior e por isso
ausento-me do mundo e viro-me para mim. Essa luta a que chamava Amor, era o seu
alimento e a meta da sua vida. Eram guerras mais dolorosas que qualquer batalha que havia travado durante a sua Guerra
Colonial. A vida tinha-lhe mostrado que mudar doía e que a tentativa de ser um
ser humano melhor, um melhor marido, um melhor pai e avô, só era bem sucedida
se admitisse, aos 55 anos, que ainda era ignorante por se perder nas ruas
estreitas do orgulho e do medo. Ao mesmo
tempo, também lhe mostrava que o providenciava de todas as ferramentas que
precisasse para construir as tais avenidas largas de sabedoria. Ele sabia que podia optar sempre entre o perdão e o rancor, a aceitação e a raiva, a compreensão e o julgamento, o Amor e o medo. O seu grande desejo, e
prometera a si próprio não morrer sem o concretizar, era voltar a ser um grande
avenida, tal e qual como era quando nascera. Uma avenida delimitada por duas linhas
infinitas de árvores que se perdem no horizonte e nas quais nunca podia tocar.
A linha de árvores da direita era tudo o que podia fazer e desequilibrar-se e a
da esquerda era tudo o que podia fazer e magoar os outros. Podia fazer tudo,
menos despistar a sua vida contra qualquer uma daquelas linhas.
Era um homem de
muitos amores e apesar de alguns dos mais importantes já se terem eternizado,
continuava apaixonado por muitas coisas. Talvez as principais fossem a própria
vida, onde se incluía o neto e o cão, e a palavra. E era aquele paralelo mágico
que o seduzia a retirar o máximo da vida, para depois se poder sentar nos
finais de tarde de domingo, e partilhar com a família tudo o que era e tinha
sido, tudo o que via e tinha visto e tudo o que pensava e havia sentido. Numa altura em que
proliferavam tantas guerras e tanta discórdia entre os homens, as histórias de
domingo eram uma tentativa de espalhar o amor e conseguir amar.
in "Os Laços que nos Unem", 2008
É exactamente isto o que sentem a maioria das pessoas que nao sabe ouvir e por isso quando falam nao sabem se fazer compreendidadas....Adorei as palavras...
ResponderEliminarbeijo grande